36 - A consciência: o eu, a pessoa, o cidadão e o sujeito

A consciência: o eu, a pessoa, o cidadão e o sujeito


A teoria do conhecimento no seu todo realiza-se como reflexão do entendimento
e baseia-se num pressuposto fundamental: o de que somos seres racionais conscientes.
O que se entende por consciência?
A capacidade humana para conhecer, para saber que conhece e para saber o
que sabe que conhece. A consciência é um conhecimento (das coisas e de si) e um
conhecimento desse conhecimento (reflexão). Do ponto de vista psicológico, a
consciência é o sentimento de nossa própria identidade: é o eu, um fluxo temporal de
estados corporais e mentais, que retém o passado na memória, percebe o presente pela
atenção e espera o futuro pela imaginação e pelo pensamento. O eu é o centro ou a
unidade de todos esses estados psíquicos.
A consciência psicológica ou o eu é formada por nossas vivências, isto é, pela
maneira como sentimos e compreendemos o que se passa em nosso corpo e no mundo
que nos rodeia, assim como o que se passa em nosso interior. É a maneira individual e
própria com que cada um de nós percebe, imagina, lembra, opina, deseja, age, ama e
odeia, sente prazer e dor, toma posição diante das coisas e dos outros, decide, sente-se
feliz ou infeliz.
Do ponto de vista ético e moral, a consciência é a espontaneidade livre e
racional para escolher, deliberar e agir conforme à liberdade, aos direitos alheios e ao
dever. É a pessoa dotada de vontade livre e de responsabilidade. É a capacidade para
compreender e interpretar sua situação e sua condição (física, mental, social, cultural,
histórica), viver na companhia dos outros segundo as normas e os valores morais
definidos por sua sociedade, agir tendo em vista fins escolhidos por deliberação e
decisão, realizar as virtudes e, quando necessário, contrapor-se e opor-se aos valores
estabelecidos em nome de outros, considerados mais adequados à liberdade e à
responsabilidade.
Do ponto de vista político, a consciência é o cidadão, isto é, tanto o indivíduo
situado no tecido das relações sociais, como portador de direitos e deveres,
relacionando-se com a esfera pública do poder e das leis, quanto o membro de uma
classe social, definido por sua situação e posição nessa classe, portador e defensor de
interesses específicos de seu grupo ou de sua classe, relacionando-se com a esfera
pública do poder e das leis.
A consciência moral (a pessoa) e a consciência política (o cidadão) formam-se
pelas relações entre as vivências do eu e os valores e as instituições de sua sociedade
ou de sua cultura. São as maneiras pelas quais nos relacionamos com os outros por
meio de comportamentos e de práticas determinados pelos códigos morais (que definem deveres, obrigações, virtudes) e políticos (que definem direitos, deveres e instituições
coletivas públicas), a partir do modo como uma cultura e uma sociedade determinadas
definem o bem e o mal, o justo e o injusto, o legítimo e o ilegítimo, o legal e o ilegal, o
privado e o público. O eu é uma vivência e uma experiência que se realiza por
comportamentos; a pessoa e o cidadão são a consciência como agente (moral e
político), como práxis.
Do ponto de vista da teoria do conhecimento, a consciência é uma atividade
sensível e intelectual dotada do poder de análise, síntese e representação. É o sujeito.
Reconhece-se como diferente dos objetos, cria e descobre significações, institui
sentidos, elabora conceitos, ideias, juízos e teorias. É dotado de capacidade para
conhecer a si mesmo no ato do conhecimento, ou seja, é capaz de reflexão. É saber de
si e saber sobre o mundo, manifestando-se como sujeito percebedor, imaginante,
memorioso, falante e pensante. É o entendimento propriamente dito.
A consciência reflexiva ou o sujeito do conhecimento forma-se como atividade
de análise e síntese, de representação e de significação voltadas para a explicação,
descrição e interpretação da realidade e das outras três esferas da vida consciente (vida
psíquica, moral e política), isto é, da posição do mundo natural e cultural e de si mesma
como objetos de conhecimento. Apoia-se em métodos de conhecer e buscar a verdade
ou o verdadeiro. É o aspecto intelectual e teórico da consciência.
Ao contrário do eu, o sujeito do conhecimento não é uma vivência individual,
mas aspira à universalidade, ou seja, à capacidade de conhecimento que seja idêntica
em todos os seres humanos e com validade para todos os seres humanos, em todos os
tempos e lugares. Assim, por exemplo, João pode gostar de geometria e Paula pode
detestar essa matéria, mas o que ambos sentem não afetam os conceitos geométricos,
nem os procedimentos matemáticos, cujo sentido e valor independem das vivências de
ambos e são o objeto construído ou descoberto pelo sujeito do conhecimento.
Maria pode não saber que existe a física quântica e pode, ao ser informada
sobre ela, não acreditar nela e não gostar da ideia de que seu corpo seja apenas
movimento infinito de partículas invisíveis. Isso, porém, não afeta a validade e o sentido
da ciência quântica, descoberta e conhecida pelo sujeito. Luíza tem lembranças
agradáveis quando vê rosas amarelas; Antônio, porém, tem péssimas lembranças
quando as vê. Porém, ver flores e cores, perceber qualidades, senti-las afetivamente não
depende de que queiramos ou não vê-las, como não depende do nosso eu percebê-las
espacialmente ou temporalmente. A percepção de cores, de seres espaciais e temporais
se realiza em mim não apenas segundo minhas vivências psicológicas individuais, mas
também segundo leis, normas, princípios de estruturação e organização das coisas, que são as mesmas para todos os sujeitos percebedores. É com essa estruturação e
organização que lida o sujeito. A vivência é singular (minha). O conhecimento é
universal (nosso, de todos os seres humanos).
Eu, pessoa, cidadão e sujeito constituem a consciência como subjetividade
ativa, sede da razão e do pensamento, capaz de identidade consigo mesma, virtude,
direitos e verdade.
 

Convite à Filosofia. São Paulo: Ed. Ática, 2000.

4.2. Vamos refletir:

1. Quem é e como se constitui o “eu” segundo Marilena Chaui?
2. Você consegue se perceber como sujeito e cidadão? Faça um texto
expressando como você se sente cidadão do mundo e a importância de
sermos sujeitos do conhecimento.

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