No final da década de 60, psicólogos americanos resolveram dar início a uma curiosa experiência. Deixaram dois automóveis idênticos abandonados em bairros diferentes do Estado de Nova York, um em bairro nobre e outro na periferia. O resultado não poderia ser diferente. O carro que estava na periferia foi rapidamente depredado, roubado e as peças que não serviam para venda foram destruídas. O carro que estava na área nobre da cidade permaneceu intacto. Mas isso os pesquisadores já poderiam prever. O que eles queriam mesmo comprovar era um outro fenômeno. Com isso, prosseguiram quebrando as janelas do carro que estava abandonado em um bairro rico e o resultado foi o mesmo que aconteceu na periferia: o carro passou a ser objeto de furto e destruição. Com isso, chegaram os pesquisadores, precipitadamente (talvez intencionalmente), a conclusão de que o problema da criminalidade não estava na pobreza e sim no desenvolvimento das relações sociais e na natureza humana.
As bases
teóricas dessa constatação veio com a Teoria das Janelas Quebradas,
desenvolvida na escola de Chicago por James Q. Wilson e George Kelling.
Explica que se uma janela de um edifício for quebrada e não for reparada a
tendência é que vândalos passem a arremessar pedras nas outras janelas e
posteriormente passem a ocupar o edifício e destruí-lo. O que quer dizer que a
desordem gera desordem, que um comportamento anti-social pode dar origem a
vários delitos. Por isso, qualquer ato desordeiro, por mais que pareça
insignificante, deve ser reprimido. Do contrário, pode ser difusor de inúmeros
outros crimes mais graves. Serve as bases daquilo que a sociedade e a
alguns setores da mídia hoje defendem: a tolerância zero, que por coincidência
também é o nome atribuído a uma teoria desenvolvida tempos atrás pelos mesmos
estudiosos da Escola de Chicago.
Essas
teorias foram construídas naquela época para serem utilizadas pelo prefeito de
Nova York como forma de empregar uma política repressiva e autoritária no
combate a criminalidade, como fundamento para combater qualquer comportamento
que fuja dos padrões sociais. Essas medidas foram aplicadas junto a um conjunto
de fatores que direcionaram para o desenvolvimento social e a limpeza nas ruas
de modo que foi capaz de produzir resultados favoráveis.
Na verdade,
a tal teoria parece interessante e bastante convincente. Pois, de fato, a
desordem gera desordem. Só não se sustenta porque tal construção visa atacar um
conflito apontando como solução um problema maior ainda. Visa penalizar com a
prisão aqueles que foram gratuitamente sancionados com a falta de estrutura
física e social. No Estado de New York funcionava mais ou menos assim: aqueles
que sofriam com o vício do álcool, por exemplo, ao invés de serem encaminhados
para um tratamento psicológico e médico eram presos. Posso ainda ilustrar com
um caso mais extremo, que ficou conhecido como caso Kathy Franklin[2]. A história
ganhou repercussão em razão do ato monstruoso incorporado pelo Estado norte
americano de algemar uma criança de 6 (seis) aninhos de idade e manda – lá para
uma instituição de saúde mental, só porque teria feito “birra com uma
professora do primário”. Ouso em dizer que aqui no Brasil funcionaria,
inicialmente, mais ou menos assim: mendigos, flanelinhas, catadores de lixo,
negros, crianças e adolescentes abandonados por suas famílias se cometessem o
mínimo deslize deveriam ir pro xadrez. Afinal, quem mente
rouba. Pois, pobreza não é desculpa para criminalidade e quem quer
dá um jeito de vencer na vida.
Foi tentando
contrapor esse pensamento que os autores Jacinto Nelson de Miranda Coutinho e
Edward Rocha de Carvalho escreveram excelente artigo afirmando o que a teoria
norte americana esqueceu de constatar: é que as pedras, às vezes, também vem de
dentro e podem ainda atingir os que estão do lado de fora[3]. Esse ponto foi
relegado pela teoria porque aqueles que estão do lado de fora não parecem
merecer atenção, desde que não façam o revide de jogar a pedra de volta.
Lamentavelmente,
nos dias de hoje, o clamor pelo direito penal máximo retrocede até a Teoria das
Janelas Quebradas para colocar a punição, a exclusão, o sentimento de vingança
coletivo, acima do desejo de ressocializar. Na sociedade que não
questiona, deixa-se de lado o que realmente poderia ajudar: tentar entender
porque a primeira janela foi quebrada. Efetivamente, é difícil tentar entender
algo ao meio de tantas informações prontas, de tantas vozes, mesmo que falando
em nome de tão poucas pessoas. É mais fácil, então, reproduzir. E se esse
discurso não atrapalhar o meu conforto, mais fácil ainda. Daí que nascem
pérolas do tipo: é da natureza do ser humano praticar delitos. Essa
é a explicação mais profunda que os meios de controle podem difundir.
É justamente
o discurso do jeitinho brasileiro, desse instinto ruim do povo
descendente das piores espécies de gente trazidas há mais de 500 anos de
Portugal (como se no resto do mundo inteiro não existisse corrupção)
que destrói o que há de mais elementar no ser humano: a capacidade de procurar
encontrar soluções das mais variadas para os mais variados problemas. É a
clássica reprodução de massa que, usando desse determinismo prosaico, cria seres
sem capacidade de autodeterminação. Seja porque incute na sociedade o
sentimento de abandonar quem já está perdido, seja porque aquele que abandona
quem está perdido abandona também sua capacidade de pensar, de refletir e de
questionar. Ou ainda, nas palavras de Hanna Arendt “aqueles que condicionam o
comportamento de outros tornam-se condicionados pelo próprio movimento de
condicionar”.
Com base
nisso, a sociedade brasileira tende a procurar na lei a solução para todos os
problemas. Talvez porque as próprias pessoas que são estratificadas para pensar
o direito trocam suas reflexões pela letra fria da lei, quando na melhor das
hipóteses aderem a um posicionamento (pensado, diga-se de passagem) consolidado
dos tribunais superiores. Talvez porque a maioria dos operadores do direito não
são mais pensadores do direito. Porque a construção da justiça só
acontece nos tribunais superiores. Lamentavelmente, o sistema jurídico atual
induz a isso. A começar pelo concurso público que hoje obriga o candidato a
deixar de pensar para passar. Perde-se a consciência crítica. Perde-se a
capacidade de desenvolver soluções para os problemas. Nesse viés, não seria
extremo lembrar que essa perda de reflexão já levou um dia a prática de
terríveis massacres contra a humanidade como o nazismo, a produção de guerras,
e outros tantos absurdos cometidos em nome da norma. Mas isso é assunto pra um
outro artigo.
Retornando a
Teoria das Janelas Quebradas, a pergunta principal é: quem atirou a primeira
pedra? Na história da Bíblia, ninguém. Quando Jesus, indagado sobre a Maria
Madalena, afirmou que atirasse a primeira pedra aquele que não tivesse pecados
ninguém atirou. Os que estavam ali para julgá-la saíram todos, um de cada vez,
começando com os mais velhos. Infelizmente a sociedade esqueceu
essa lição. Jogam-se pedras o tempo todo. De dentro pra fora e de fora pra
dentro. Joga-se pedras quando se defende o caos na periferia. Defende-se que
crianças e adolescentes possam ser presos como se fossem adultos e quando se
defende o extermínio de quem não se amoldar a norma, através a pena de morte e
da prisão perpetua. Há até quem se indigne com bolsas de faculdade para pobres
e até com o assistencialismo do auxílio bolsa-escola. Afinal de conta, depois
do bolsa-escola ninguém mais quer trabalhar.
O que
apedrejadores esquecem de extrair desse contexto é que o caos nunca permanece
imóvel. Que acostumar as pessoas com a desordem é transformá-las em
instrumentos do crime. E que conflitos que chegam as áreas mais nobres são
determinados por uma conjugação de fatores criados normalmente de forma
aleatória pela maioria da população. Uso a palavra aleatória para
enfatizar determinados atos como resultado da irreflexão ou até da inflexão.
Naquilo que para Hanna Arendt residiria em ser banalidade o mal.
Cientificamente falando, a sociedade precisa conhecer o efeito da “realimentação
do erro”, o qual o filósofo e matemático Edward Lorenz chamou de Efeito
borboleta. É a noção de que o bater das asas de uma borboleta num extremo
do globo terrestre pode provocar um caos no outro extremo em um pequeno
lapso de tempo.
Desta forma,
seria irracional usar todas as teorias do direito penal máximo como solução
para os males do mundo. Como se fosse possível dissociar o estado de miséria,
pobreza e desordem que existe nas periferias da violência nos lugares mais
nobres. Querer isolar no cárcere as pessoas que vivem nesse estado sem
apresentar meios de modificar a problemática social equivale a caminhar
para a construção de um modelo que isola preventivamente todos que estão em um
ambiente marginalizado. O que ainda assim não se sustentaria, visto que
ficariam os mais abastados sem mão-de-obra para limpar a própria sujeira. O
Direito penal máximo, os delitos de acumulação, o sistema da periculosidade, a
redução da menoridade penal e muitas outras teses que encontram no
encarceramento a solução para a criminalidade, nada mais fazem do que fomentar
a produção de mais delitos. Do contrário não haveria reincidência. Basta
comparar as estatísticas da superlotação dos presídios com o aumento dos
índices de criminalidade.
O direito
penal nada mais deve ser do que um instrumento para contenção de abusos por
parte do estado, na aplicação de sanções, como defende Zaffaroni[8]. Como
defende o Papa Francisco[9], deve o direito penal caminhar lado a lado com o
princípio da dignidade da pessoa humana. É preciso que a sociedade possa
entender que a pena corresponde a uma tríplice finalidade qual seja, prevenção,
retribuição e ressocialização. Não deve servir apenas com instrumento de
vingança privada. Por isso, defendo aulas de direito básico, filosofia e
sociologia em todas as escolas de nível médio. Mas também defendo que essas
matérias de humanística sejam parte obrigatória de um programa de
aperfeiçoamento permanente entre juízes, defensores, promotores, procuradores e
todos aqueles que manejam o direito posto, para que possam remanejar também o
direito pressuposto.
A
conveniente intolerância social hoje atinge níveis tão altos que ouso arriscar
que Jesus ficaria escandalizado com o tanto de pedras que Maria Madalena
receberia. Porque as pedras que quebram as janelas estão por toda parte,
inclusive em forma de cisco embaçando a visão de muitos
operadores do direito.
Sei que
existem inúmeras pedras no meio do caminho. Por isso, enquanto o sistema
jurídico não for reformado, enquanto o direito não for construído com a
consciência da própria sociedade, as pedras continuarão a serem arremessadas. E
quem não tiver pecados que prossiga arremessando!
Monaliza Maelly Fernandes Montinegro é Bacharel em Direito pela Universidade do Estado do Rio Grande do
Norte; Analista do Seguro Social com formação em Direito; Aprovada no concurso
da Defensoria Publica do Estado da Paraíba
Nenhum comentário:
Postar um comentário